Antes de começar: se um dia eu inventar uma medicação ela será azul. Quando lançaram o Viagra todos falavam do “azulzinho”. Trabalhando em hospitais psiquiátricos ouvia muito falar do temido “azulzinho”, que por sua vez era o Haldol. E recentemente quando olhamos para a foto com cápsulas brancas e azuis lembramos do remédio de nome complicado pra câncer. (Vai que eu descubro a cura da pilantragem? Ia cair muito bem em Brasília; claro, iria ser também um comprimidinho azul…)
Fosfoetanolamina. Funciona? Como um sem-número de outras substâncias em fase de teste, não se sabe. Pode ser que sim; mas pode ser que não tenha efeito algum. Pesquisando artigos com este nome, há uma (no mínimo estranha) escassez de publicações sobre o assunto. Há alguma coisa publicada sobre modelos in vitro de melanoma na década de 80, depois parecem ter esquecido a fosfoetanolamina. Muitos artigos sobre câncer se referem a ela como um veículo para outras terapias. Não obstante, uma publicação muito recente em uma revista de impacto médio observa que o efeito celular da fosfoetanolamina é semelhante ao efeito de uma vitamina que pode ser usada como quimioterápico, a menaquinona. Fora isso o que se tem até agora é muito pouco.
Justificaria a corrida pela medicação (se é que já se pode chamá-la desta maneira)? Depende. Individualmente, talvez. O câncer é uma doença difícil; quem tem ou teve alguma pessoa na família com a doença (o que não é nada incomum) bem o sabe. Esgotadas as possibilidades de tratamento curativo, a família e o paciente, não querendo se despojar dos últimos sopros de esperança, lançam-se à caça das terapias alternativas. Eu faria o mesmo. Poucos se lembram mas Linus Pauling fez o mesmo; o problema é que ele era Linus Pauling, renomado cientista. No final de sua carreira, nos anos 80 e 90, começou a defender o uso de altas doses de vitamina C para o combate ao câncer. Ele mesmo ingeria altas doses da substância e a defendia como medicação polivalente. No entanto, aos 93 anos de idade o câncer de próstata o venceu. “Quando ele estava certo, o que era mais frequente, ele estava muito, muito certo. Mas quando ele estava errado, o que ocorria de vez em quando, não havia meio de fazê-lo enxergar o erro”, dizia um velho amigo de Pauling. Muitas pesquisas posteriores mostraram que altas doses de vitamina C têm efeito igual ao do placebo no câncer.
Mas há duas diferenças aqui. A primeira é que a vitamina C é encontrada em qualquer farmácia. Ainda mais nos Estados Unidos, onde são vendidas aos montes em enormes potes de livre acesso nas drogarias (não sei se era assim naquela época). E por múltiplos fabricantes. Por outro lado, a fosfoetanolamina não é normalmente comercializada; não se acha fosfoetanolamina em qualquer lugar. É preciso que se mande sintetizá-la. A segunda questão é sobre saúde pública; se não há nada que comprove sua eficácia clínica (e não in vitro) contra o câncer, não há porque judicialmente obrigar uma instituição de ensino e pesquisa a produzir a substância em larga escala. Ademais, ela nem foi testada em humanos, não são conhecidos seus efeitos colaterais, como pode a USP ser obrigada a fornecê-la a pacientes através de liminares? O risco que a pessoa quer assumir, ao usar algo em teste que funciona em alguns modelos não-humanos, não pode ser assumido também por outras pessoas ou instituições além dela mesma.
Assim, a não disponibilidade da substância associada ao fato de ela ser enganosamente alardeada como “cura do câncer” dá uma ampla margem para que “pacientes e seus familiares aflitos se convertam em alvo fácil de exploradores oportunistas”, segundo comunicado da USP. Acertou em cheio.
Um dia um paciente meu perguntou sobre os efeitos do magnésio na saúde, dizendo ter visto diversos vídeos no youtube falando de seus benefícios. Alertei sobre o risco de hipermagnesemia, e respondi que até o momento não havia evidência científica de seu benefício; mas “vai que funciona”… Advogado do Diabo: uma das medicações mais eficazes em psiquiatria é um íon, o lítio. Uma molécula simples, de peso 7 g/mol, descoberta acidentalmente (a fluoxetina, o Prozac, é uma molécula muito mais complicada por exemplo, pesando 309 g/mol). Com relação ao magnésio, e à fosfoetanolamina, “vai que”… Mas do “vai que funciona”, que são os primeiros passos de uma pesquisa, que pode ser um risco que a pessoa assuma individualmente, que dá margem à propaganda enganosa e ao charlatanismo, há uma grande distância para o “sim, funciona”. E não dá pra obrigarem a USP a misturar estas coisas.