“Mas essa p… um dia vai mudar”?

brasiliaNa saída do hospital onde trabalho, apinhada de gente, havia um músico tocando Charlie Brown Jr., arrecadando uns trocados com o chapéu jogado no chão, quando ouvi esta frase. O finado vocalista da banda era um grande músico mas não um eminente poeta; não obstante, a sentença reflete um velho cansaço, comum a muitos brasileiros.

No final de semana teremos uma grande manifestação contra o atual governo. O partido que está no poder há 12 anos, utilizando-se das grandes reformas sociais que promoveu ao longo destes mandatos para alavancar sua popularidade, agora sofre as consequências da colossal quantia de dinheiro público desviada para fins particulares durante o mesmo período.

Mas isso tudo vai mudar depois do dia 16?

Difícil dizer que sim. A história nos conta o contrário. Foi assim com a Operação Mãos Limpas na Itália da década de 90, um grande caso de corrupção sistemática semelhante à Lava Jato. Ao todo, em alguns anos, seis primeiros-ministros, mais de quinhentos membros do parlamento e vários milhares de administradores públicos foram pegos pela investigação. A operação desvelou um esquema generalizado de pagamento de propinas para beneficiar empresas e pessoas específicas em contratos públicos, e levou a uma grande reestruturação política na Itália, dando fim aos principais partidos políticos da época.

Com uma operação de tal envergadura era de se supor que a corrupção na Itália chegaria ao fim, ou que ao menos diminuiria drasticamente. Mas não foi o que se observou, haja vista o célebre nome “Berlusconi”, que volta e meia povoa a mídia com escândalos. Escreve Alberto Vannucci, acadêmico da Universidade de Piza, que a intensidade da corrupção em um país depende, além de oportunidades institucionais para o desvio de dinheiro (monopólio, poder de decisão de alocação de verbas, etc.), da cultura moral vigente nos indivíduos da sociedade. A corrupção vai ser maior na medida em que os padrões morais internalizados pelos indivíduos em geral são menores. Assim, o “custo moral” de se aproveitar de oportunidades para enriquecimento próprio se torna menor quanto menos o ato ilegal representar uma ruptura de valores em vigor na sociedade. Tais valores são de constituição complexa, e geralmente envolvem o espírito público dos funcionários que trabalham para qualquer instância do governo, a cultura política e cívica, a identidade política e “qualidade moral” da classe política, as atitudes públicas contra atos ilegais, e assim por diante.

Pois bem; continuando meu trajeto para casa, na rua do hospital diversos camelôs ilegais vendiam seus produtos na calçada, tensos, pois a qualquer momento teriam de sair correndo com as coisas debaixo dos braços, caso algum policial por ali passasse (como muitas vezes já vi acontecer). Uma fila de carros parava logo abaixo de uma placa de “proibido estacionar”. Mais a frente avistei um ciclista sem capacete, descendo a rua na contramão pela pista exclusiva do ônibus. Peguei o carro e, tentando sair na rua do hospital, um feroz pedestre atravessava uma movimentada avenida, lenta e arriscadamente, fora da faixa (que estava a cerca de 10 metros rua abaixo) e olhando feio, como se sua desvantagem (desvantagem?) por não estar motorizado legitimasse seus atos ilegítimos. No semáforo mais a frente, assim que a luz amarela acendeu o carro logo a seguir deu aquela acelerada marota e furou o vermelho, esperando a boa e velha tolerância e conivência dos espectadores-cúmplices que também cometem pequenos deslizes no dia-a-dia.

Quantas vezes já ouvi “bom, mas se até os políticos roubam, por que não posso roubar um pouquinho”?

Estas pessoas, que cometem o “crimezinho nosso de cada dia”, são as mesmas que ficam apoquentadas quando abrem o jornal e leem que descobriram que mais não sei quantos milhões foram desviados daqui, outros tantos dacolá, etc. É uma questão de magnitude, mas mal sabem elas que fazem parte do mesmo sistema moral que faz com que os custos da corrupção sejam baixos para aqueles que desviam dinheiro.

A Operação Lava Jato certamente é uma grande vitória contra a corrupção, um grande bem para o povo brasileiro; mas pouco adianta protestar se a atitude geral não mudar. Sim, os pequenos atos importam, e muito, pois os grandes se constroem, ou pelo menos se deixam acontecer, a partir deles.