Je suis Charlie: religião e violência

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Há muito tempo atrás, conversando com um experiente psicoterapeuta, este contou-me que às vezes se pode revelar alguns posicionamentos pessoais no papel de terapeuta, exceto quando se trata de dois temas: política e religião.

Guardadas as devidas proporções, ambos os assuntos envolvem sistemas de crenças frequentemente não dialetizáveis, cumprem funções importantes no psiquismo e mobilizam emoções intensas em seus fiéis (pois é, política não deveria ser assim…).

Não obstante, no caso específico da religião há o fanatismo e as facções radicais, levando tais características ao extremo. Tivemos mais um exemplo disso ontem, com a chacina de cartunistas do Charlie Hebdo.

Mas por quais motivos a religião pode levar a atitudes tão violentas?

Antes de tudo, para que não culpemos injustamente uma religião pelos crimes, lembremos que a ligação entre violência e facções religiosas não é exclusividade da contemporaneidade, tampouco de seitas radicais do islamismo. A história está cheia destes exemplos como o da Igreja Católica e a Inquisição, e a atualidade também traz ilustrações importantes como os cultos apocalípticos de Charles Manson e de Shoko Asahara. Assim, não é culpa de religião nenhuma, mas sim de pequenos grupos que radicalizam o entendimento de doutrinas e de textos sagrados.

Analisando tais facções radicais, frequentemente cita-se como motor de atos de terrorismo religioso sentimentos de vergonha e humilhação atrelados à pratica extremista de cultos religiosos. Eles podem estar no dia a dia da pessoa que procura o culto, como podem ser proporcionados pela própria religião através de um Deus patriarcal e punitivo. Quando submetido a vergonha e humilhação o ser humano em geral reage com violência. Segundo uma pesquisa nos Estados Unidos, por exemplo, a taxa de violência cresce exponencialmente em tempos onde o desemprego é maior. Dentre os vários fatores que explicam este aumento, vergonha e humilhação por parte dos desempregados são frequentemente citados.

O outro componente importante é uma forte separação entre o bem e o mal (o puro e o impuro, o sagrado e o profano, etc.). Como forma até de combater os sentimentos de vergonha, estes são projetados vorazmente para fora através de uma rígida separação entre aqueles profanos e os puros. Os profanos perdem o caráter de humanidade, dando força ao fator seguinte.

A impossibilidade de empatizar com as vítimas é outro fator fundamental; para os terroristas religiosos, as vítimas entram em “morte social” muito antes de serem mortas. O que ajuda esta dinâmica é a ideia de que a religião dos extremistas está intimamente envolvida com a prática de sacrifícios, ao contrário das práticas do ocidente, que estariam assim longe da espiritualidade. “Os outros” nunca entenderiam, fortalecendo a cisão entre bem e mal, citada acima.

Assim, a prática de sacrifício é outro tema recorrente (na maioria das religiões, aliás). Os homens bomba são exemplo disso: a purificação do mundo e de si próprio através do sangue derramado, e a busca pelo paraíso (nas palavras dos próprios homens-bomba). A purificação dos pecados através do caminho do martírio.

O desejo de união com um grande Outro transcendental está presente em diversas religiões. Mas o que é característico das facções extremistas é a união através de cisões drásticas entre o bem e o mal, através da violência usada no sacrifício como forma de purificação de alguém envergonhado e humilhado.

Assim, vergonha e humilhação, separação entre bem e mal, um Deus punitivo e raivoso, sacrifício e busca por purificação são elementos fundamentais de seitas religiosas extremistas.

Mas isso tudo é teoria. E teoria ajuda, mas não aplaca o sentimento de desolação que sinto ao ver o noticiário e fotos da editora cheia de sangue. Até dá pra conceber que locais do Oriente Médio juntem-se a cultos radicais, pela proximidade a adeptos, mais frequentes na região. Mas o que assusta é que, como já exposto na mídia, diversos jovens de toda parte do mundo, inclusive do Brasil, estão se voluntariando para participar de tais seitas. Faz-nos refletir sobre um crescente de intolerância e radicalidade, cada vez mais presentes nos dias de hoje. Antes que venham os chatos, é óbvio que uma coisa não justifica a outra; mas o mesmo país que viu a morte dos cartunistas, proibiu o uso da burka e viu neste ato uma vitória contra a intolerância.