No fundo boa parte de nós torce pelos mais fracos. Quando não temos time torcemos pelas zebras. Nas copas sempre escolhemos os africanos contra os europeus. Afinal, Roger Milla sempre foi muito mais legal que Beckenbauer! Carregamos todos uma espécie de “síndrome de Davi”, na qual temos grande satisfação ao nos depararmos com situações onde os menos favorecidos viram o jogo. Gostamos de assistir histórias de superação pessoal. O porteiro que virou empresário. O filho de analfabetos que virou escritor. A portadora de deficiência física que virou atleta paraolímpica. O tímido que virou ator. A gordinha que virou modelo. A filha de doméstica que virou médica. Sim, a filha de doméstica que virou médica.
Pequena pausa: nenhuma das historietas acima faz menção ao conceito de cor.
Pois bem. O brasileiro, povo sofrido, de passado colonial e historicamente desfavorecido, gosta de uma virada de mesa. É inegável o sucesso que tais trajetórias têm. O que nos atrai nestas narrativas é o enaltecimento de valores como determinação, superação, força pessoal contra adversidades, persistência, resiliência. Nesse nosso coitadismo crônico de eterno colonizado, de país pobre onde as coisas sempre dão errado, vibramos quando Braz vence Lavillenie. Quando Pereira vence Phelps. Quando Sena passa no vestibular.
E seria natural, sim, vibrar quando a moça pobre que mora na COHAB passa em primeiro lugar em um vestibular para medicina. No fundo, iríamos sim torcer pelo que ela intitula senzala. Mas ela não foi feliz ao colocar sua vitória pessoal em uma perspectiva de negros versus brancos.
Nos processos de preconceito e estigmatização, um dos primeiros passos do estigmatizado é aceitar para si estereótipos que circulam na sociedade. Ou seja, vestir a camisa. Seja para falar bem, seja para falar mal dela. Quando a moça joga sua questão de superação para uma questão racial, está exatamente a fazer isso. Sua declaração reforça que o negro é da senzala e o branco é da Casagrande, e que esta foi sua vitória. Ao invés de borrar os limites entre negro e branco, ao invés de criar uma certa colorblindness para o assunto, estimulando os outros a não olharem as pessoas pela cor, passa uma linha ali, demarca. Certamente muitos leram a manchete, com sua foto, e pensaram “puxa, a filha de uma doméstica vai ser médica, que legal!”. Mas após lerem a reportagem e seu depoimento viram um apontamento desnecessário de algo que nem estava em jogo.
Mas, admito, não sejamos ingênuos achando que todos leram o artigo com purismo e que todos torceram por sua vitória. Ainda há muito racismo e preconceito no Brasil. Muitos podem ter lido a matéria desprovidos de preconceito, mas há, de fato, uma certa Casagrande que se remexeu na poltrona ao ler o texto. Se por um lado a declaração da moça não foi das mais felizes no que diz respeito ao combate ao preconceito, certamente ela serviu para atiçar aqueles racistas-inconscientes-disfarçados-de-bonzinhos-politicamente-corretos que aproveitaram sua inadequada declaração para desaguar ódio desmedido, inundando-a com críticas exageradas e desproporcionadas.
Enfim, sua declaração não desabona sua vitória. Que seja uma excelente médica!