Quando me deparo com questões polêmicas como as denúncias que estão vindo à tona de estupro nas festas da faculdade que cursei, e diante do pronunciamento de diversos alunos e ex-alunos, muitos que até então pouco tinham se manifestado, e em vista até de declarações de professores titulares da casa, penso que não dá pra ficar calado neste momento.
A primeira fala que aparece é aquela “será que é isso mesmo?” “Pode ter havido algum engano?” “Será que a menina não estava embriagada, fez sexo consentido e se arrependeu?” Quando ouvimos isso, primeiramente pensamos por quais motivos mulheres inventariam um estupro, ou se exporiam de maneira tão visceral. Por qual razão causariam tamanho rebuliço. Ainda mais correndo o risco de manchar a imagem de uma instituição pela qual tanto lutaram para entrar. A outra coisa que devemos ir atrás são de dados; conforme publiquei anteriormente, o número deste tipo de ocorrência é maior do que pensamos, pelo menos em estudos feitos em outros países: uma em cada 20 universitárias americanas refere ter sido estuprada, quase três quartos delas quando estavam alcoolizadas. Infelizmente não temos estes dados no Brasil; muito provavelmente pelo tabu que eles representam. Outras pesquisas apontam também que a maioria das mulheres prefere não denunciar este tipo de violência por vergonha e culpa.
Esta sorte de argumento muitas vezes assume proporções mais radicais e extremadas, travestindo-se de pensamentos machistas como “ela mereceu”, “quem manda ser ingênua”, “ela também provocou” e coisas do gênero. Se os primeiros invalidavam a queixa por presumir mentira, histeria e exagero, sendo uma espécie de “fazer vistas grossas” a uma questão seríssima, estes últimos usam o machismo para autorizar o que sob hipótese alguma pode ser autorizável.
Assim, as queixas têm de ser investigadas e julgadas para que se avalie se procedem ou não. Este mérito no fundo não nos cabe, mas sim à justiça. Não obstante, penso que se deve dar muito mais atenção a esse tipo de crime no ambiente universitário como um todo.
Por outro lado, não podemos ser também ingênuos. Tais fatos têm de ser apurados e não podem ficar debaixo do tapete, mas é evidente que eles dão força a um crescente e cada vez mais frequente processo de pichação do médico, que volta e meia tem os seus picos. Notícias como as de Roger Abdelmassih, as pinturas do túnel Rebouças, a reação negativa a políticas federais de saúde pública, e estas agora de estupro em festas de uma faculdade de medicina comumente fazem com que se rompam os limites do bom senso, com que se empreguem generalizações ilegítimas, e com que se alimente certo sentimento latente de demonização da classe médica. Talvez pese sob nós o fato de termos escolhido uma das poucas carreiras regidas por um código de ética, e o fato de o termos feito em parte como uma escolha pelo altruísmo. Em tempos em que se espera muito e pouco se tem, aquele que assume o arquétipo social de quem deve ajudar é mais vulnerável a virar bode expiatório de uma sociedade insatisfeita. Junte-se a isso o extremismo que certos indivíduos ou grupos exercem nas redes, e temos como resultado uma onda de destrutibilidade contra uma classe profissional; neste momento específico, uma onda de destruição mais singularizada contra uma instituição, a Faculdade de Medicina da USP.
Como disse um professor por aqui, a liberdade excessiva às vezes pode gerar exageros. Estava ele ciente de que quem opta por estar do lado da liberdade, tem noção que este mesmo lado encontrará alguns poucos extremistas que agridem a torto e a direito, indiscriminadamente, em prol da anarquia e da total falta de regra. Estes são revés da mesma moeda daqueles que discursam que “ela merecia”, e seus ímpetos destrutivos têm de ser evitados.
Assim, vamos repudiar o estupro, sirvamos de modelo contra este tipo de agressão hedionda, mas tenhamos bom senso e não destruamos uma faculdade que está há mais de 100 anos formando profissionais responsáveis por cuidar de outras pessoas.
Salve a escola!