Maria e Joana eram amigas de faculdade. Interessadas por política, filosofia, sociologia, antropologia, receitas de bem-casados, novelas e livros de romance, sentavam-se certa vez para almoçar nos bancos ao ar livre de um dos departamentos da universidade quando sentiram um estranho cheiro. Entreolharam-se constrangidas, mas baixaram a cabeça e voltaram a comer. No entanto, outra golfada de ar as atingiu e não puderam evitar que o assunto começasse:
– Maria… vamos fumar? – iniciou Joana
– Não, não quero.
– Mas por que? Todo mundo fuma… (1)
– Não… Isso faz mal pra cabeça. Eu li uma entrevista em algum lugar uma vez dizendo que quem usa isso aí pode ficar louco. (2)
– Nossa, nunca ouvi falar nada sobre isso… Mas que besteira… Você não sabe de nada. Vamos usar vai…
– Não Joana… – bradou novamente Maria, já com certo ar de enfado.
– Olha, você está desinformada. Hoje em dia estão usando a coisa aí como remédio. Saiu no jornal que o negócio faz bem! Vi até na internet que um pai importou uma substância da maconha ilegalmente pra dar para o filho que tinha alguma coisa neurológica, e o moleque se curou! (3)
– Sim, mas até onde eu sei era uma parte da droga só, senão ele tinha dado logo maconha pro filho… Uma substância, ou seja, uma e apenas uma das muitas coisas que existem na erva! As outras tantas coisas devem fazer mal, muito mal… Não quero! Pare de insistir…
– Mas por que Maria? Como você é quadrada…
– Sou mesmo…
– Você não quer fumar por que? Porque faz mal? É isso? E a cervejinha que você bebe? E o cigarro que você fuma? Também não fazem mal? Será que fazem menos mal que a maconha? (4,5)
– Olha, se fazem mais mal ou menos mal pra mim tanto faz… Independente disso, não vou começar a usar mais uma coisa que me prejudique.
– Por que não para de usar as outras coisas então? – Joana fitou-a fazendo cara de astúcia.
– Ora… Elas me dão prazer, tudo bem? Não vou abrir mão delas… Para elas, que já estou acostumada, vale a pena pagar o preço. E fora isso, não, o principal na verdade, é que a maconha é ilegal.
– E se ela fosse permitida, você usaria? Da mesma maneira que usa o seu cigarro, que toma a sua cerveja?
Por um instante Maria parou e pensou. Parecia que as palavras de Joana principiavam a ter algum efeito real em seu pensamento.
– É, não sei… É uma boa pergunta…
– Pois é, imagina se o governo legaliza o uso da erva… Ia ser demais… Talvez pessoas como você, preconceituosas, passassem a usar… (6,7)
– Será? Realmente tem essa questão de se o governo liberar… No Uruguai já fizeram isso… Parece que em alguns lugares dos Estados Unidos também é liberado o uso…
– Diga-me, você usaria? Ou não? Se fosse permitido…
– Não sei…
– Bah, aposto que usaria…
– Não sei, estou falando que não sei Joana! Talvez usasse. Porque às vezes é bom fazer o que não pode…
– Bom, então, no atual estado das coisas, fumar o treco é proibido! Então vamos logo fumar!
Maria fez uma pausa, baixou a cabeça lentamente, olhando para o chão, e pensou, em silêncio. Depois retomaram a conversa em tom mais áspero. Após alguns minutos de discussões que alternavam entre o enorme medo que Maria tinha de queimar um baseado e a irritação dela mesma para com a amiga, que lhe empurrava para algo que a princípio não queria fazer, finalmente as duas decidiram que iriam juntar-se à rodinha que emanava aquele peculiar odor e pediriam aos colegas de faculdade se poderiam dar um trago na misteriosa substância.
– Mas e se eu ficar louca com isso? Não quero ficar louca…
– Não vai ficar louca… Vamos lá, a gente só experimenta…
– Tá bom, vamos lá. Afinal, estava pensando também, que direito que o governo tem de proibir que eu fume? O que eles tem a ver com a minha vida? Por que eles tem que opinar sobre eu ter uma vida saudável ou não? Eu sei que pode fazer mal, e pra mim isso já basta… Portanto, quero arriscar… Assumo os riscos!
– Isso mesmo, vamos lá! Daqui a pouco vão proibir McDonalds porque pode causar infarto…
E caíram na risada.
Joana dizia entender os danos que a maconha podia lhe causar, mas no fundo não tinha muita noção. Então Joana fumou a primeira vez. Depois fumou a segunda, a terceira, a quarta, a quinta. Nunca mais parou, mesmo mais velha, quando trabalhava. Dava-lhe um certo sossego após um longo e estressante dia de trabalho. Vez ou outra tinha um pequeno lapso de memória e de ansiedade no serviço, mas assim seguiu sua vida.
Maria era uma das poucas pessoas que sabia que a maconha podia gerar psicose e outros distúrbios graves (4,5). E Maria também fumou a primeira vez. Depois fumou a segunda; achou estranho. Fumou a terceira e a quarta, achou as coisas mais estranhas ainda. Na quinta vez um novo universo se abriu para ela; passou a ouvir a voz de Deus diariamente em sua cabeça. Isolou-se da família e dos amigos, passou a acreditar em coisas que só ela sabia. Foi internada acreditando ser a Virgem Maria. E desse mundo nunca mais voltou.
Anos depois, em seu gabinete o senador recebe o doloroso relato da mãe de Maria, pedindo que vetasse o projeto de lei que descriminalizasse o uso de maconha. Recebeu também a proposta de Joana, que agora era uma defensora da liberação da droga e trabalhava e liderava algumas ONGs. Olhando os dois pedidos, ficou confuso. Pegou o último cigarro que havia dentro do maço. Virou-o para amassá-lo e viu uma ascorosa foto de um pulmão negro e doente pelo câncer, e leu o aviso “fumar causa câncer de pulmão”. Foi à janela e, inabalado, acendeu seu último cigarro do expediente. Terminou ele, jogou as duas propostas na mesa de novo e pensou: “Dane-se, decido isso outra hora, preciso ir para casa”.
Abriu a porta e foi embora.
1 – Wagner, GA, Stempliuk, VA, Zilberman, ML, Barroso, LP, Andrade, AG. Alcohol and drug use among university students: gender differences. Rev Bras Psiquiatr 2007, 29(2).
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Em média um terço dos estudantes universitários do Brasil revelou que usa maconha.
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Uso de maconha aumenta em 1,5 vezes o risco de desenvolver psicose. O risco aumenta conforme a dose, podendo chegar a mais de duas vezes.
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Estudos pré-clínicos com canabidiol sugerem sua eficácia na epilepsia refratária. Canabidiol é uma das 400 substâncias da Canabis sativa e não tem efeitos psicológicos, como o THC. O THC, por sua vez, é a substância que causa psicose, dependência, e que gera os efeitos psicológicos da droga. Quanto mais “forte” a maconha, maior a quantidade de THC, menor a de canabidiol.
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A maconha parece não gerar déficits psicológicos duradouros após cessado o seu uso. No entanto, usuários pesados podem demorar semanas até voltarem às suas funções cognitivas normais.
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Maconha pode causar ansiedade, pânico, psicose e acidentes de carro em uso agudo. Uso crônico causa dependência, bronquite, dificuldades educacionais e disfunções cognitivas.
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Na Holanda, a legalização da maconha aumentou o número de pessoas que usa a droga. Nos Estados Unidos, em estados onde o uso médico de maconha foi permitido, o número de usuários (recreativos) também aumentou.