Não assisti o filme ainda. Mas foi inevitável não ler nada a respeito, já que a polêmica está rondando “Sniper Americano”, um filme que conta a história real de um dos maiores heróis (ou assassinos?) das forças armadas norte-americanas.
A primeira polêmica é justamente esta; Chris Kyle: herói ou assassino? Em seu registro militar constam 160 mortes confirmadas, de um total de 255 mortes presumidas. Uma das pessoas mais letais da marinha americana, certamente uma pessoa que entrou para a história da instituição. Seriam todas estas mortes justificadas, legitimando a caracterização de Chris como herói?
Dilema semelhante já fora discutido há quase 150 anos por Dostoievski, através do seu personagem Raskólnikov, protagonista de “Crime e Castigo”. Na parte III do livro investigadores conversam com Raskólnikov sobre um artigo que este teria escrito para uma revista, falando de pessoas ordinárias e extraordinárias, e do direito de matar. Justifica o personagem que as pessoas extraordinárias teriam certa autorização para cometer homicídios, tendo em vista um objetivo maior para a humanidade. Ou seja, o grande cientista pode, para alcançar o êxito de sua experiência, passar por cima da vida de pessoas, se for o caso de fazer uma grande descoberta que irá mudar o rumo da humanidade. O mesmo aconteceria com outras pessoas “extraordinárias”, às quais seria permitido que tirassem a vida de outras, visando um bem maior. Claro, à discussão inicial segue-se uma de muitas perguntas óbvias: como a pessoa vai saber se é extraordinária ou não? E se ela matar alguém, pensando ser extraordinária quando na verdade não é?
Alguns focam a discussão no ser humano Chris, no sniper. Como militar, designado a uma função, em teoria ele teria a legitimidade para matar, para defender o seu país e seus cidadãos do mal. A autorização vale também para o assassinato de menores de idade? Mas apesar de esta ser uma boa discussão, ela é apenas a ponta de um novelo que nos leva mais adentro nos questionamentos: a dita “Guerra ao Terror” é válida e legítima? Percebemos então que a questão é muito maior que Kyle, quando nos perguntamos se o intervencionismo norte-americano é legítimo. Os Estados Unidos seriam um “país extraordinário”, podendo intervir militarmente em qualquer lugar além de suas fronteiras? Se pensarmos no 11 de setembro, sim. Se pensarmos no Vietnam e nas alegações de armas de destruição em massa no Irã e no Iraque, talvez não…
Chris Kyle, após se aposentar da marinha, ironicamente acaba sendo morto por um colega militar em um campo de tiro. E aqui entra outro sentido do extraordinário que geralmente vem à tona quando se trata de crimes: a loucura. Uma das alegações da defesa de Eddie Rough, o assassino de Kyle, era de que o mesmo sofria de estresse pós-traumático. Surge também, como lamentavelmente vemos com frequência, o termo “esquizofrenia” associado ao criminoso. Eddie seria um psicótico, segundo alegam alguns. Como sempre a doença mental acaba sendo varrida negativamente para o extraordinário, fugindo do rol de outras doenças físicas, e como de praxe é utilizada como justificativa para o crime (ou atenuador). A culpa não é mais de Eddie, mas sim da entidade doença mental. A doença mental, por ser extraordinária, atenua o crime. Interessante notarmos esta associação, e pensarmos que também Raskolnikov, personagem de Dostoievski, passa por diversas experiências extraordinárias, flertando com a loucura em diversos pontos do livro.
Mas em Dostoievski, não que a loucura tenha gerado o crime, mas o crime gerou a loucura. Para a defesa de Eddie, lamentavelmente cria-se o mito de que loucura está ligada a violência e agressividade, e a alegação foi a de que a loucura gerou o crime. Passa-nos despercebido por fim um fato. Eddie desenvolveu estresse pós-traumático devido a uma guerra que seu país propôs e matou o protagonista de um filme que glorifica a violência, como muitos outros da mesma cultura. Não existiriam aí outros réus?
Felizmente o juiz, que deve ser fã de Dostoievski, não comprou a idéia e responsabilizou Eddie pelo ocorrido.