Olhou os pingos no vidro, escorrendo abaixo por caminhos incertos, outros explodindo ao impacto da queda sobre a janela. O tilintar das gotas d’água dedilhando a vidraça trazia-lhe aconchego. Lembrava das noites frias e confortáveis na estreita cama de seu quarto, na casa da mãe. A acolhedora morada que abrigou tantas aventuras e desventuras de sua infância e adolescência; as brincadeiras da rua, a poeira de terra na barra das calças, as amigas e suas intrigas, as sabotagens do invejoso irmão mais velho, a descoberta do sentido feminino do descer, empregado mensalmente depois de superada a etapa da meninice, o primeiro beijo no primeiro namorado, a mãe eternamente insatisfeita, as infindáveis brigas entre os pais, o interminável litígio de separação. A chuva no vitral abria-lhe esta porta temporal e trazia-lhe à memória todas estas lembranças. O macacão de brim de criança-bebê, a saia rodada preferida de ir à escola e a tutu de fazer balé, a calça fuseau descolada para se entrosar com as amigas, a sandália melissa, o sapatinho aberto de brilhante. O sutiã que incomoda mas é “legal”, o jeans rasgado, a camisa de banda de rock, o coturno rebelde. O batom, o perfume caro, o rímel e o blush, a bota montaria, a camisete com botões largos e mangas sete oitavos.
Tudo substituído pelo semblante sério, austero e distante, pelo terninho cru, pelos óculos arredondados e discretos e pelos saltos carreteis. A maquiagem, antes sensual, viva, até um pouco exagerada e carregada em alguns momentos, deu lugar ao tom sóbrio e amenizador de quem procura esconder as irregularidades que o tempo imprime à pele, tentando homogeneizar a tez para disfarçar a heterogeneidade inexorável causada pela jornada da vida. O choro histérico e pueril da frustração por sentir-se só, preterida pelo namorado imaginado que fora roubado pela amiga de classe, acabou sendo substituído pela mudez melancólica da solidão de um casamento árido de monólogos desencontrados. Não sabia quais os sinuosos caminhos tinham percorrido para que tivessem ambos chegado àquele ponto, mas fato é que agora tudo lhe parecia tão seco quanto a folhagem de outono a cair.
A festa fora linda. Salão arrumado com primor, padrinhos escolhidos com o coração; muita bebida, gente bonita rindo, dançando, comemorando. As fotos para marcar a memória e imortalizar o pacto nupcial. Uma noite inesquecível, para selar aquela que deveria ser uma união para todo o sempre. Mas o tempo degradou a relação. As coisas foram sendo colocadas de lado, muito foi deixando de ser feito. As gentilezas aos poucos sumiram; os jantares românticos, os presentes, os pequenos agrados que pouco significam no dia-a-dia mas que muito somam em períodos maiores como o mês ou o ano. Cada um voltou-se em direção oposta ao outro e mergulhou-se no trabalho, nos amigos, no que quer que fosse, menos em ambos. As conversas tornaram-se cada vez mais escassas. Quando ocorriam, eram meros pseudocompartilhamentos assépticos do cotidiano laboral sem graça de cada um, ouvidos com indiferença, sem que aquilo causasse qualquer comoção. Não sabia ao certo se ele estava saindo com alguém nestes últimos tempos. Poderia ser bem provável, dada a distância entre ambos. Não conseguia mais se conectar a ele, não conseguia mais lê-lo, e neste cenário pensava ser perfeitamente possível para ele esconder uma vagabunda qualquer disposta a forçar um triângulo onde deveria reinar apenas uma parelha.
O tempo tudo deteriorou. Pois com ele tudo também se amaina, tudo diminui de intensidade. As emoções, as alegrias, o colorido da vida, tudo diminui de amplitude. Até mesmo as tristezas, que servem para afrontar os momentos bons e torná-los mais espetaculares ainda, agora são mais blasés. O soluço do pranto foi aos poucos sendo substituído pelo silêncio deprimido de resignação. Tudo acaba evanescendo. E assim estava ela a morrer um pouco a cada dia; já fazia anos. Não só morria como também não conseguia fazer com que nada dela brotasse. Seu útero era terra infecunda onde nada crescia, não fazendo mais do que refletir a maninhez da relação. De nada adiantava a frustração de anos do marido, pois ali nada haveria de nascer.
E assim a vida perdeu tonalidade e vitalidade, ganhando uma coloração cinza que tudo tingia e contaminava. Naquele momento sentia-se terrivelmente só. Isolada. Encontrava-se no mais profundo ostracismo auto-imposto pelos próprios pensamentos.
Mas aquele olhar para a janela de súbito despertara-lhe algo. Diferentemente dos outros ocasionais mergulhos que realizava na própria memória, aquele em específico fizera saltar-lhe algo de seu mais profundo eu.
Tornou para onde fisicamente estava e viu a mesa, cheia de mulheres a conversar, a sala, abarrotada de gente, a amiga que com ela falava empolgadamente sem parar havia já uns quinze minutos. Estava em uma reunião no escritório. E as pessoas estavam falando com ela, despejando palavras nela.
Olhou ao seu redor e entendeu que ninguém tinha percebido sua ausência temporária de espírito, introspectiva em suas reflexões, uma vez que todas continuavam a conversar com ela.
Sentiu-se angustiada. Queria sumir dali. O ar começou a faltar-lhe, as mãos ficaram geladas, e um enorme mal-estar tomou conta dela. O peito apertou-lhe e fez com que pousasse a mão em seu precórdio. Com as poupas dos dedos palpou seu colar, azul de turmalina. Presente de sua mãe por ocasião do baile de debutante, era apetrecho frequente em seu vestuário. Mais do que isso, era como que um amuleto da sorte.
Dedilhou-o nervosamente, passando as contas de dedo a outro, vagarosamente. Então refletiu. E por alguns minutos pairou, sentada à mesa, com o olhar baixo e a mão no colar, pensativa.
Tomada de raiva e revolta arrancou-o de seu pescoço com força e jogou-o no chão. Empurrou a cadeira para trás com firmeza, levantou-se e, obstinada, saiu da sala de reuniões. Saiu para nunca mais voltar. Sentia-se agora incondicionalmente livre. Caminhava com extrema leveza. Nunca mais usaria nada de turmalina.