Depois de voltar da Bienal do Livro, o amigo me pergunta:
– O que você achou do Rio?
– Ah, o Rio é maravilhoso, sempre gosto muito de ir pra lá.
– Pois é, o Rio é muito bonito. Mas…
Sim, mas os recentes eventos fazem o Rio não parecer tão bonito assim. Se antes preocupava a violência do tráfico de drogas nos morros da cidade, hoje um pouco mais calmos com a instalação das UPPs, o que se viu no domingo foi nova demonstração de violência, sob outro escopo: a violência dos arrastões. Além deles, assolando as praias mais badaladas da cidade, alguns moradores, cansados com a impunidade, resolveram por conta própria reagir e açoitar pessoas “suspeitas” dentro de um ônibus que vinha da periferia da cidade.
Logo surgem os defensores do revide, aqueles que acham que estão certos os tais grupos de frequentadores que resolvem ir à desforra contra os meliantes, inclusive utilizando as redes sociais para incitar a violência. O argumento é de que os crimes não podem passar impunes. Logo se lê “lugar de bandido é na cadeia”, ou “malandro tem que apanhar mesmo”, etc. O governo se defende, dizendo que a polícia foi desmoralizada. Pois se agem com mais severidade, são taxados de preconceituosos e segregacionistas. Se baixam a guarda são acusados de serem coniventes com a violência dos arrastões.
Pois bem; é óbvio que o crime é errado e tem de ser punido. Assim, a polícia tem sim que combater a violência. Este papel não pode ficar a cabo dos banhistas, do cidadão comum. É dever do Estado manter a ordem. Mas, de fato, agir de maneira “preventiva” é complicado. Realmente parar pessoas “suspeitas” vindo da periferia gera atos dúbios que podem ser interpretados como preconceito. Por que esta leitura?
A ação do Estado na verdade não pode parar por aí. Não pode se limitar a coibir o efeito colateral de algo sem tratar a causa disso. Pois o arrastão nada mais é do que fruto do gradiente social e da marginalização dos mais pobres (nunca ouvi falar de arrastão nas praias de Ibiza…). Alguns grupos menos favorecidos, marginalizados da sociedade, saem da periferia e invadem os espaços dos mais abastados. O roubo, o assalto, é a tomada “à força” daquilo que eles não conseguem ter. Lembra-me muito dos “rolezinhos”, movimentos muito semelhantes de jovens da periferia que invadiam shoppings-centers de luxo na cidade de São Paulo e geravam ojeriza nos habituais frequentadores de classe AA dos mesmos. Choque de realidade, isso sim: base e ponta da pirâmide cara-a-cara. A diferença era que os rolezinhos eram legais, enquanto que os arrastões envolvem os crimes de roubo e assalto.
O mais reacionário já diria “alto lá, você está arranjando justificativa para essa violência!” Não. Não é uma desculpa. É um entendimento das causas. Quando vemos um Estado que só pune, abstendo-se de movimentos que incluam aqueles à margem da sociedade e que diminuam a diferença social entre os cidadãos, a leitura é de que o Estado é conivente e perpetua a segregação social. “Está bom eles lá e nós aqui”. Assim, enquanto houver tamanho gradiente, haverá um contingente de pessoas insatisfeitas dispostas a romper com as regras da sociedade, na qual se veem pouco participativas, e tomar à força aquilo que não podem ter.
Por fim, imaginemos uma situação em que este grupo de pessoas dos arrastões fosse da mesma classe social que os banhistas, e que fizessem aquilo “just for fun”. Suponhamos que morassem em outro bairro, também abastado, na zona norte do Rio. Não haveria problemas em a polícia executar bloqueios e averiguar suspeitos que de lá viessem, de ônibus. Não seria preconceito. Pois são pessoas parecidas com as vítimas frequentadoras da praia. Mas o que ocorre é que os “arrastadores” fazem parte de um contingente de excluídos. Então, os bloqueios, ao mesmo tempo que são a aplicação da lei, são também, comumente, o reforço da segregação.
Punir, aplicar a lei, sim, deve ser feito; mas também incluir, não segregar, e diminuir a diferença social.