Ideologismos tupiniquins e a falta de leitos psiquiátricos

manicomioMeus primeiros empregos como psiquiatra foram em hospitais psiquiátricos. Manicômios, mais especificamente, já que não eram leitos de psiquiatria em hospitais gerais. E sempre gostei de trabalhar nestes lugares. Porque é lá que está a loucura mais profunda, e por conseguinte, é lá também que estão as pessoas que mais precisam de ajuda.

Havia uma sensação muito boa de tirar um paciente da crise, comparar o antes e o depois de um surto psicótico, o estado como a pessoa entrava na enfermaria e o estado no qual saía. Uma parte dos casos não melhorava muito. Não obstante, sempre algum grau de melhora poderia ser visto na maioria dos pacientes.

Aí dávamos alta para o Fulano, satisfeito com todo o trabalho em equipe que fora feito. E alguns meses depois o Fulano estava lá de novo. Em crise, fora de si. Estaca zero. E isso se repetia. Internação, melhora, alta, reinternação. Internação, melhora, alta, reinternação. Na Inglaterra este padrão é chamado de “revolving door”, ou porta giratória. Vai e volta.

Por que isso acontecia, por que ainda acontece? Porque a rede não funciona.

No que se refere à saúde mental no Brasil o país há algumas décadas vem sendo influenciado por um forte viés anti-manicomial, seguindo a tendência mundial de se acabar com hospitais “stand-alone”, ou seja, hospitais especializados apenas com leitos psiquiátricos. Se mania, esquizofrenia, depressão, são doenças que afetam um órgão do corpo humano, o cérebro, devem ser tratadas como outras doenças do corpo humano, em hospitais gerais. Quando se trabalha em manicômios esta premissa parece óbvia. A dificuldade em se pedir exames de sangue simples que há nestes lugares, a segregação dos “doentes mentais”, que têm um hospital próprio para eles. Classicamente manicômios eram construídos longe dos grandes centros urbanos. Quer-se o louco longe das pessoas…

Correto, vamos acabar com os manicômios. Mas, e aí?

E aí que a política de saúde mental pública no Brasil sempre foi contaminada pelo ideologismo, falhando no pragmático. Pois é legal levantar a bandeira anti-manicomial, é elegante, é chique ter uma ideologia liberal; mas colocar coisas no lugar, abastecer uma rede comunitária de saúde mental dá trabalho, custa dinheiro, e não é assim tão glamuroso. Não faz alvoroço (político e midiático).

Dados mostram que no Brasil já havia, há décadas, uma escassez de leitos psiquiátricos. Ou seja, havia poucos leitos, e eles estavam no lugar errado, nos manicômios. Não obstante, fecharam-se tais leitos sem que a devida reposição fosse feita em hospitais gerais. Entre 2005 e 2015 todas as regiões do Brasil registraram uma queda no número de leitos psiquiátricos em manicômios. Mas, para a grande surpresa, neste mesmo período o número de leitos psiquiátricos em hospitais gerais também caiu (com excessão da região Sul). Enquanto países como Alemanha e Espanha têm 52 e 26 leitos psiquiátricos para cada 100.000 habitantes, respectivamente, países estes que já passaram por uma reforma anti-manicomial, o Brasil apresenta parcos 11 leitos para cada 100.000 habitantes. Com forte tendência a uma redução ainda maior (vide reportagens recentes sobre fechamento de leitos no SUS).

Com este fechamento drástico de leitos, em um lugar onde já havia muito poucos deles, houve um aumento de CAPS para atender uma necessidade comunitária de atendimento psiquiátrico. Mas este aumento é demasiadamente insuficiente, gerando uma demanda reprimida.

Um aumento ineficaz, para inglês ver.

Por último, a verba destinada à saúde mental no Brasil é vergonhosa. A depressão, por exemplo, é a doença que mais gera anos de vida perdidos por incapacidade no mundo. Logicamente mereceria uma fatia da verba da saúde equivalente. Países de alta renda  dedicam 7% da verba da saúde à saúde mental. Para países do grupo “upper-middle income”, ao qual o Brasil pertence, a cifra média é de 4,3%. Já o Brasil destina míseros 2,38%. Resultado do que é designado como preconceito estrutural contra a doença mental, preconceito que envolve mobilização de recursos e legislação.

É aí que voltamos à porta-giratória e ao Fulano do começo do texto. Há poucos hospitais; a rede comunitária é insuficiente; há descaso político e pouca verba para a saúde mental, mesmo quando comparado com países de renda semelhante; não há campanhas anti-estigma, fazendo com que o preconceito contra o doente mental penetre nas mais diversas camadas sociais, invadindo família, profissionais de saúde, legislações e o destino de verbas governamentais.

O resultado é um sistema de saúde mental público caótico, onde a família não suporta o seu parente com doença mental grave mal-tratada, não vê alternativas na comunidade para sanar seu problema, e o interna recorrentemente para se livrar dele.

A atual volatilidade do governo provisório sobre o que é preciso fazer ou não fazer com a saúde me lembra os ideologismos baratos feitos para comprar a população. Afinal, é chique e charmoso defender uma ideologia anti-manicomial. Mas para além disso, quando se quer um combate eficaz ao preconceito atrelado à doença mental, quando se quer tratá-los de maneira digna e eficaz, aí a coisa perde a atratividade midiática e vai pra debaixo do tapete.


Ref.: Loch AA, Gattaz WF, Rössler W. Mental healthcare in South America with a focus on Brazil: past, present, and future. Curr Opin Psychiatry. 2016 May 12. [Epub ahead of print]