A obra de arte para Heidegger

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Para entendermos a relação entre poesia e a obra de arte em Heidegger, precisamos inicialmente entender o conceito de obra de arte para o autor.

Em “A origem da obra de arte”, Heidegger coloca que a questão da obra de arte não deve ser definida pela obra, nem pela arte, tanto menos pelo artista. Definir a obra por estas perspectivas seria errôneo, já que “é a obra de arte que deve dizer-nos o que é a arte, e é a arte que nos deve ensinar o que é a essência da obra de arte”. Ou seja, a obra de arte é definida em termos relacionais; ela não possui uma definição absoluta, mas define-se a partir da relação com outras instâncias. É dependente neste sentido; mas por outro lado também é independente, conforme explica Heidegger mais adiante.

No que a obra de arte seria independente? Na primeira parte de “A coisa e a obra”, exemplifica o filósofo que um bloco de mármore possui forma e matéria. No entanto, esta forma é aleatória, espontânea; a matéria não foi informada (esculpida) pelo homem, conforme afirmavam também os gregos. Já o instrumento possui aspecto de coisa, mas não de coisa espontânea, como o bloco; no instrumento houve ação da mão humana, de modo que a sua forma determina sua utilidade. No entanto, é apenas na execução de sua utilidade que o instrumento acha sua essência. Sempre há um referencial para o instrumento, no qual ele é apenas em relação a um outro através da relação de confiança. O instrumento estaria a meio passo entre o bloco de mármore e a obra de arte, por exemplo. Assim sendo, a obra de arte possui a autonomia que o instrumento não tem, pois a obra, enquanto coisa, subsiste por si só (não precise de um referencial, como a utilização do instrumento, para que se defina). Neste sentido aproxima-se à coisa simples, pura, pois existe de forma independente; mas difere dela, ao mesmo tempo, pelo fato de por ela ter passado a mão humana. Assim, a obra de arte é autônoma, existe por ela só enquanto coisa, mas difere das coisas puras e simples pelo fato de ter sido fabricada pelo homem.

Não obstante, são em seus aspectos dependentes e relacionais, os mais importantes para a presente discussão, que a obra vai estabelecer conexão com a poesia. Diz Heidegger que a obra de arte é o acontecimento do conflito entre Terra e Mundo. Por Terra entende-se não a terra como matéria-prima da qual é feita a obra; mas entende-se aqui a Terra como a physis, aquela que se revela através da obra de arte. O filósofo ilustra o templo como exemplo; sua “firme postura torna visível o espaço invisível do ar. A rigidez e a quietude da obra contrastam com o agitar das ondas do mar deixando perceber, por sua calma, o barulho das águas”. Assim a obra faz surgir a Terra pelo seu contraste, por aquilo que ela não é; pela quietude faz surgir o ruído, pela clareza faz surgir a escuridão, e assim por diante. Como que, se ali não houvesse o templo, não nos daríamos conta destes aspectos da Terra. A obra chama a atenção para estes aspectos ao se impor em sua existência como contraste. “A terra é o seio no qual o desabrochar das coisas se faz em sua própria ocultação”. No entanto, o erigir-se sobre o terreno, do templo, também é a apresentação de um mundo; proporciona aos homens a visão que têm de si mesmo. Na pintura do par de sapatos, de van Gogh, expressa-se o mundo do camponês quando se percebem os cadarços tortos, o couro gasto, o aspecto de ter sido muito utilizado. Assim também ocorre com o templo, que expressa o desejo do homem por algo grandioso, por algo que o resguarde. Em suma, na obra de arte ocorre a revelação da Terra e a apresentação de um mundo.

No entanto, Terra e Mundo aparecem na obra não de forma pacífica e ordenada; há, ao invés disso, um conflito, um embate neste encontro. E é neste encontro que a verdade do ente surge. A verdade surge pois, conforme dito acima no exemplo do templo, é neste encontro que ocorre o desvelamento, a desocultação do ser (a-létheia), e para Heidegger a compreensão deste desvelado é essencial para a compreensão da própria verdade. Segundo o autor, a não-verdade relaciona-se de duas maneiras com a verdade: inicialmente pelo caráter de a verdade ser retirada da não-verdade, em um caráter de transformação. Ou seja, a não-verdade seria pressuposta, sendo a verdade um passo posterior no qual ela é trazida à luz de parte da não-verdade (mito da caverna); a não-verdade seria uma extensão oculta do ente, aquilo que não vemos, mas que existe. Consequentemente, verdade e não-verdade fazem parte da essência do ente. O segundo tipo de relação entre verdade e não-verdade constitui-se no fato de que quanto mais desocultamos, quanto mais verdade trazemos à claridade, mais não-verdade percebemos. A verdade, neste sentido, jamais é uma desocultação total, já que o desvelamento pressupõe o velamento. Quando trazemos algo à tona, à verdade, tem-se como dado que algo estava oculto; como a idéia de Sócrates, de que saber é saber também cada vez mais que nada se sabe.

Temos até aqui então, que a obra de arte é o embate entre Mundo e Terra, embate este que faz surgir a verdade. Verdade esta que não é compreendida em seus termos positivos, mas também através de sua não-verdade. A essência do saber (alétheia) estaria compreendida na desocultação de um ente, em uma hervorbringen do ente. E isto, na obra de arte, é realizado não de uma maneira técnica, pois a técnica resulta de um domínio consciente da verdade; quando o conhecimento faz parte já da esfera técnica, significa que ele já foi descoberto, significa que ele já é uma verdade e já foi desocultado. A técnica viria apenas para validar esta verdade. Em termos práticos, é diferente quando alguém quer explicar em teorias psicológicas as relações entre as pessoas (de uma maneira técnica, através de conexões lógicas), e quando um escritor deixa que se entrevejam através do papel, de maneira intuitiva, as mesmas relações humanas (Dostoievski, por exemplo). Assim a obra de arte é este eterno embate que traz a tona a verdade, ao descocultá-la e ao se dar conta do oculto, do ente.

Como se relaciona a poesia a esta dinâmica? A poesia é tomada em Heidegger em dois sentidos: como Poesie para designar o sentido habitual de poesia como arte literária, e como Dichtung, que é uma palavra utilizada por Heidegger como Poesia como toda a expressão do ser. Para poesia como Dictung, o autor refere-se ao ato de colocar-se em obra da verdade. O poetizar seria a abertura de um rasgo, de um risco (Riss), um clarão que iluminaria o ente, trazendo a verdade da escuridão. A poesia aqui está relacionado com um desvelar-se de maneira não-técnica, como a descrita acima. “A arte, como colocação em obra da verdade, é Poesia. Não é apenas a criação da obra que é poética (dichterisch); também é poética a contemplação da obra”.

Já a poesia como obra literária é o segundo sentido que Heidegger dá a palavra[1]. Para o autor, a poesia seria a linguagem tomada em toda a sua riqueza, em toda a sua originalidade de possibilitar a desocultação da verdade. A essência da poesia é expor o da-sein do ser humano ao ente em sua totalidade. Onde não há linguagem, o não-ente não se manifesta. Assim, o não ente não se manifesta na pedra, na planta, no mármore. É a linguagem que traz a tona a possibilidade de desocultação, de concepção da não-verdade. Ela é sublime, pois traz esta possibilidade de imensa riqueza ao ser humano, mas ao mesmo tempo é aterradora, uma vez que faz surgir também a possibilidade de jogar o ser humano nas trevas da não-verdade. Ao contrário do linguajar cotidiano, onde existe a tendência à “conversa fiada”, à degeneração da linguagem, a poesia traz ao mesmo tempo a possibilidade primeva de desocultação do ser, conserva historicamente esta qualidade de ter sido a fundadora desta possibilidade, ao mesmo tempo em que guarda também o primor de ser arte, de ser meio de excelência para o alcance da verdade (através de sua não verdade). Da mesma forma que o pensar filosófico está de maneira diversa e privilegiada relacionada à linguagem, em busca da compreensão do ente, a poesia também se relaciona de maneira semelhante à linguagem. No entanto esta última tenta alcançar a verdade do ente através da arte, é uma desocultação através do movimento de embate entre Terra e Mundo, enquanto que a primeira o faz através das conexões lógicas.

 

[1] Na verdade, como explicado anteriormente, em alemão utiliza-se Poesie e Dichtung. O sentido a ser explicado agora é o de Poesie.